domingo, 19 de outubro de 2014

A Psicologia e o Sagrado: configurações contemporâneas

A edição de setembro / outubro de 2014 da Revista Contato, periódico do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, traz como matéria de capa "A psicologia e o sagrado: profissionais pesquisadores da psicologia falam sobre os diversos aprofundamentos dessa relação". A escolha do tema é pertinente e se insere, ainda, nas discussões atuais sobre os entrecruzamentos e implicações éticas do relacionamento entre a psicologia e as práticas religiosas e / ou alternativas. A revista pode ser acessada em pdf no link abaixo: 



Parte da matéria contou com a participação de nosso colaborador Everton de Oliveira Maraldi. Diversos trechos da entrevista original com Everton não foram utilizados na publicação final, mas o leitor de A psique da fé poderá conferi-los na íntegra. No texto de resposta às perguntas da entrevista, apresentado a seguir, Everton aborda algumas das configurações contemporâneas da relação entre a psicologia e o sagrado, enfatizando os resultados de suas pesquisas e observações em diferentes contextos religiosos. Seu argumento básico é controverso: o sagrado (categoria outrora restrita à dimensão da religiosidade), tornou-se hoje uma ferramenta a serviço da secularização e do individualismo. Disso decorre um curioso fenômeno: a banalização e massificação da espiritualidade e da vivência do sagrado, a par de sua recorrente associação com ideias e práticas pseudocientíficas.

DEFINIÇÕES DO SAGRADO

Do ponto de vista epistemológico, podemos dizer que, sendo a psicologia uma ciência, ela não irá se pronunciar sobre a natureza do sagrado ou do transcendente, mas sobre o comportamento do indivíduo frente ao sagrado. A existência do transcendente é, desse ponto de vista, algo da alçada da religião e não compete ao psicólogo responde-la (ao menos enquanto ele exerce a função de psicólogo). O máximo que compete a um psicólogo é investigar, em termos científicos, se as alegações de algumas pessoas indicariam a existência de alguma anomalia científica, alguma informação nova acerca de nossa compreensão da mente e do comportamento humanos (como o fazem a parapsicologia e a psicologia anomalística), o que é bem diferente de atestar uma doutrina ou crença religiosa em particular. Todavia, as relações entre psicologia e sagrado se tornam muito mais cambiantes e negociáveis quando nos deparamos com o tema de uma perspectiva social ou psicossocial, o que desejo explorar mais detalhadamente nas linhas que se seguem.

O conceito de sagrado é bastante fluido e difícil de se demarcar em relação a outros conceitos. Rudolf Otto (1869-1937) definiu o sagrado como o que é numinoso (do latim numen), isto é, o divino, o não racional, o não sensorial, um mistério fascinante e tremendo, o fundamento da experiência religiosa. Muitos se contentam em definir religiosidade e sagrado como coisas sinônimas, e não se pode negar que sejam temas profundamente relacionados, mas há também quem defina sagrado como tudo o que transcende a condição humana, quer tenha caráter religioso ou não. É assim que se dá, por exemplo, o culto dos antepassados em alguns povos, considerado algo sagrado.  Em nossa sociedade, há também quem diga que a valorização da vida é sagrada ou que o amor é sagrado.

O teólogo e eminente estudioso das religiões, Rudolf Otto

Observa-se, assim, nessas definições, certo desprendimento do sagrado em relação ao que é puramente religioso, ou, mais especificamente, ao aspecto doutrinário e prático das religiões. O sagrado é hoje um conceito que se articula, ainda, à noção cambiante e igualmente fluida de Espiritualidade, que concede espaço para uma religiosidade mais individual, relativamente independente de contextos e instituições religiosas específicas. Diz-se de algumas pessoas, por exemplo, que possuem “um lado espiritual independente de religiões”. Essa postura tem muito a ver com o sincretismo religioso, com uma busca pessoal pelo sagrado, própria de uma sociedade secularizada e individualista como a nossa, em que as instituições religiosas tradicionais deixaram de exercer um papel fundamental na estruturação da ordem social, e se tornaram opções em um mercado religioso cada vez mais amplo e competitivo.

RELIGIÃO, CIÊNCIA E SECULARIZAÇÃO

Cada vez mais nos conscientizamos de que essa nova forma de viver o sagrado e a religiosidade desviou o interesse dos coletivos para o próprio indivíduo. Hoje, não é a religião que detém o poder sobre o discurso do sagrado; é o indivíduo quem constrói sua própria fé, sua relação particular com o sagrado, ao consumir diversas crenças e práticas e formar sua colcha de retalhos espiritual. Na verdade, nós nos apercebemos de que as pessoas estão se comportando frente às religiões tal como se comportam em outros aspectos de sua vida, como parte de sua inserção em uma sociedade de consumo, altamente tecnológica e científica. 

As pessoas não querem mais viver o sagrado por meio de uma única doutrina, não toleram dogmas ou caminhos irreversíveis. Elas querem experimentar aqui e agora o sagrado, tal como experimentam um petisco antes de compra-lo num supermercado ou restaurante. Elas se tornaram extremamente céticas e questionadoras, e só querem acreditar no que podem ver e experimentar, aquilo que eu chamo na minha tese de “lógica de São Tomé”. É aí que a vivência do sagrado e do transcendente, por meio dos rituais, do transe dissociativo e da alteração de consciência, desempenham o seu papel, tornando essa transcendência acessível a todos que dela queiram participar ou que se esforcem por aprimorar tais habilidades.

Tese de doutorado de Everton Maraldi sobre fenômenos de transe e dissociação em diferentes contextos religiosos

A experiência religiosa está hoje a serviço da secularização e do indivíduo, e não o contrário. As instituições, os coletivos se tornaram meros suportes da fé, já não definem as pessoas, como quando dizíamos que alguém era “católico” ou “protestante”. Essas categorias tendem a se tornar cada vez mais vazias e frágeis. Por sua vez, o relacionamento pessoal e não mediado com o sagrado abre caminho para o surgimento de diversos gurus e líderes novos e provisórios, que ousaram contestar a tradição, elevando suas visões individuais ao nível de seitas, movimentos ou dissidências no interior de outros grupos religiosos. Esses líderes são sedutores, sobretudo, pelo fato de venderem sua própria forma de relação com o sagrado, de ensinarem o caminho deles mediante sua experiência direta com os seguidores.

A vivência do sagrado quer hoje imitar a ciência. É por isso que muitas doutrinas e movimentos religiosos se esforçam por aproximar seu discurso de algo científico (ou aparentemente científico): recorrem a termos técnicos, só acessíveis ao iniciado, e tentam encontrar respaldo para suas crenças em estudos de parapsicologia e física quântica.

Mas essa aproximação de um discurso quase científico, contestável em muitos casos, também inclui uma aproximação com a psicologia. A religiosidade e a relação com o sagrado, mais do que em outras épocas, tornaram-se, em nossa contemporaneidade, formas de recurso terapêutico; em outras palavras, elas se “psicologizaram”, e não é mentiroso ou equivocado afirmar que elas disputam espaço com a psicoterapia. O debate sobre as chamadas práticas alternativas, complementares ou integrativas diz respeito justamente a uma erosão dessas fronteiras, que se tornaram negociáveis, e que fazem os pacientes leigos trafegarem entre diversos contextos e práticas, confundindo suas reais dimensões e origens. O fato é que há certo perigo nisso tudo, que nada tem a ver com a legitimidade dessas terapias espirituais ou com algum tipo de ameaça ao mercado da psicoterapia. O que as pessoas religiosas não estão percebendo é que esses fenômenos sociais são sinais de desarticulação do sagrado, do espiritual e do religioso no mundo contemporâneo. As religiões precisam agora emprestar certos recursos de legitimação, validação e coerência interna de outras práticas, como a ciência e a psicologia. E como as opções religiosas são hoje múltiplas, cada qual teve de se adaptar a esse contexto de forma não muito diferente do que ocorre em outros âmbitos no interior da sociedade de consumo. Essas mudanças no campo da fé e do sagrado mostram que, independentemente de os indivíduos se definirem como religiosos, espirituais ou ateus, o fato é que há grande descrença em torno do transcendente, uma descrença inconsciente, mas que está lá. Estamos assistindo, assim, à expansão de um materialismo enrustido de espiritualismo. Trata-se de um processo em que o aspecto afetivo do sagrado foi encapsulado por mecanismos opacos de legitimação que, no fundo, desvalorizam o transcendente. Trata-se daquilo que Habermas definiu como invasão (ou colonização) do sistema – isto é, da lógica instrumental da economia, da tecnologia, da ciência etc. – no mundo da vida – o mundo das esferas sociais de reprodução simbólica, do cotidiano etc.

"A vivência do sagrado quer hoje imitar a ciência"

O fato de as pessoas não poderem mais buscar o espiritual pelo espiritual, a fé pela fé, e de reduzirem esse relacionamento com o sagrado a um relacionamento mercadológico mostra que elas não acreditam ou são duvidosas. Significa, em outras palavras, que Deus está morto e os indivíduos agem como se ele não estivesse. Curiosamente, isso foi apontado por muitos autores da psicologia, como o próprio Carl Jung, cujo esforço foi o de tentar restabelecer essa ligação com o sagrado pela via da imaginação e dos sonhos, da autodescoberta e da individuação. O que Jung propôs não foi ouvido; muitos querem misturar psicologia e religião, por vezes se justificando em Jung, mas aquilo que a mentalidade new age propõe agora não é o mesmo que pensava Jung. O processo de individuação não é algo que se possa comprar ou aprender em algumas poucas lições, não é algum tipo de ferramenta massificada do tipo “faça você mesmo”, é um processo árduo e trabalhoso, inerentemente conflitante e sem solução evidente. O que as pessoas vivem na religiosidade new age hoje é uma relação com o sagrado parecida com a identidade líquida de Zygmunt Bauman, uma mistura confusa, uma busca impulsiva e ansiógena, dentro da qual pulam de galho em galho, de religião em religião, de guru em guru. 

Carl Jung e John Freeman (da BBC) na casa do psiquiatra suíço, em 1959. 

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman

SINCRETISMO: MARCA BRASILEIRA?

Muito se diz que esse sincretismo nômade é parte de um hibridismo próprio da cultura brasileira, de uma cultura plural, mas eu acredito que esse antropofagismo já não é mais um pressuposto nosso. Ele agora é parte de uma tendência cada vez mais global, ele se tornou impositivo por causa da globalização e da unificação homogeneizante que a acompanha. Pelo menos no campo religioso, ele deixou de ser um elemento exclusivamente brasileiro, embora ocorra de modo particularmente intenso e visível no Brasil. Conheço pesquisadores estrangeiros que olham nosso país com a mesma curiosidade de quem olha para a Índia, uma espécie de lugar sagrado, mas eles ainda não se deram conta de que estamos tão expostos às influências globalizantes da mentalidade new age quanto eles. Na minha pesquisa de doutorado, por exemplo, constatei que alguns templos de Umbanda hoje já não flertam só com o Catolicismo, o Espiritismo ou o Candomblé, mas com o pensamento esotérico e místico, com ideias emprestadas da Física Quântica, da Alta magia e assim por diante. Estão perdendo sua suposta identidade “afro-brasileira” e se tornando herdeiros de um “xamanismo urbano” que é fruto da nova era.


É difícil prever o que ocorrerá nas próximas décadas, e não quero ser mais um a propor uma solução mágica ou premonitória para questões tão importantes, que se acham nas fronteiras da psicologia e da religião. Mas creio ser tarefa do psicólogo salientar às pessoas sua relação ambígua com o sagrado. O psicólogo não pode se pronunciar sobre a veracidade ou não dos conteúdos de crença, não pode encaminhar a reflexão para uma doutrina ou outra, mas pode denunciar na religião o que a corrói por dentro. Ele não pode se pronunciar sobre a existência de deus (ou Deus, para os cristãos), mas pode dizer se a relação com deus é patológica. Ele não pode dizer quais crenças e práticas sagradas o paciente deve seguir, mas pode ajudá-lo a entender se sua relação particular com elas é saudável. 

Everton de Oliveira Maraldi é mestre e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Inter Psi - Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais da USP. Atualmente, é psicólogo clínico e professor de psicologia da Universidade Guarulhos.